O medo nos tempos da Raiva

Até a descoberta da vacina anti-rábica, a doença, resultado da ação de um vírus transmitido pelos lobos, condenava as vítimas à morte após longos sofrimentos. Durante séculos, a mera menção do termo “raiva” suscitava um sentimento de terror, mesmo entre as pessoas mais corajosas.

As que a contraíam, raramente escapavam. Antes que Louis Pasteur estabelecesse em bases científicas as relações entre o homem e o vírus da raiva, a humanidade foi impotente diante desse flagelo. Nenhum tratamento conseguia combatê-la ou erradicá-la. As vítimas eram, em geral, abandonadas ou submetidas a charlatães, que indicavam paliativos sem nenhum efeito sobre a evolução fatal da doença.

O drama começava quase sempre da mesma maneira, isto é, com a chegada de um lobo ou de um cão raivoso perto de um núcleo urbano. Com os olhos revirados e a boca babando, o animal atravessava uivando as ruas da localidade. Espantava a todos, habitantes e animais domésticos, que fugiam desordenadamente.

O pavor logo se instalava no povoado. As pessoas se refugiavam em suas casas, e alarmes soavam. As mulheres rezavam, e os camponeses se armavam de bastões com uma foice na ponta, além de machados e porretes. A calamidade não atingia apenas os campos, mas também, e sobretudo, as cidades. Em 1433, lobos raivosos foram vistos até nas ruas de Paris. As pessoas que conseguiam matá-los penduravam os animais pelas patas e recebiam generosas recompensas.

A Gazette de France relatou que, no inverno de 1755, “Jeanne Chapuiseau, de Coulommiers, em Vendômois, foi atacada em plena cidade por um lobo raivoso que entrara em sua casa. A mulher conseguiu afugentá-lo, mas foi antes mordida no rosto e no seio. Ela morreu alguns dias mais tarde em meio a sofrimentos terríveis”. As regiões francesas da Alsácia, do Franche-Comté, do planalto de Langres e da Borgonha foram, ao longo dos séculos, castigadas pelo flagelo. A maioria dos lobos vinham da Polônia ou da Boêmia e eram capazes de percorrer grandes distâncias em apenas alguns dias. Após atravessar a Alemanha, entravam na França pela “Via dos Lobos”, situada entre Wissembourg e Sarreguemines, antes de se espalhar por todo o território.

Eram animais enormes, com 1,15 metro de comprimento, pesando entre 50 e 70 kg. Sua força estava no queixo, no pescoço e nas pernas dianteiras. Os dentes pontudos mordiam de lado, provocando profundos ferimentos. Durante muito tempo acreditou-se que a mordida dos lobos era venenosa como a das víboras. Os camponeses do Bourbonnais costumavam fazer, ainda no século passado, esta prece para se proteger dos “animais maléficos e venenosos”: “Santo Huberto, protegei-me dos lobos loucos, dos cachorros loucos e das víboras”.

Na realidade, somente as mordidas provocadas por animais contaminados pela raiva eram mortais. Um único animal contaminado podia provocar inúmeros dramas numa região, como sugere este relato encontrado nos arquivos do departamento de Doubs: “Em 23 de setembro de 1798, por volta das 5 horas da manhã, alguns camponeses que iam ao mercado de Besançon foram atacados, perto da aldeia de Beure, por um lobo furioso. (…) As autoridades organizaram uma perseguição e encontraram o lobo perto de Vellote. Travou-se então uma luta violenta: o animal enfim sucumbiu e seus despojos foram exibidos em toda a aldeia em festa. Mas o acontecimento teve um desfecho triste. Embora a autópsia tenha concluído que o animal era são, após algumas semanas todos os que haviam sido mordidos revelaram sinais de hidrofobia, um dos sintomas habituais da raiva. Uma dúzia de pessoas morreu após sofrimentos atrozes”.

Os lobos, principais vetores da raiva, transmitiam a doença aos cães. Estes se tornavam, assim, tão perigosos quanto os lobos da Europa Central que os contaminavam. Em poucos dias, um cão normal podia se transformar em um temível animal feroz. Ele se tornava então um “cachorro louco”, cujas mordidas podiam infectar o próprio dono e sua família. Ao receber Louis Pasteur na Academia Francesa, o escritor e historiador Ernest Renan declarou: “A humanidade deve ao senhor a supressão de um terrível mal, isto é, da desconfiança que sempre se misturava às carícias feitas no animal em que a Natureza melhor exibiu seu sorriso bondoso”.

O professor Victor Galtier, decano da Escola Veterinária de Lyon, descreveu em 1880, de forma bem realista, a evolução da raiva nos cães: “Após uma mordida virulenta e um período de incubação mais ou menos longo (15 a 60 dias), surgem, visíveis nas alterações do comportamento do cão, os primeiros sintomas da doença. Ele se torna triste, melancólico ou muito alegre e carinhoso. Ainda obedece e não tenta morder, mas já é perigoso, uma vez que a saliva contém o mal. (…) Depois sua agitação aumenta; se a doença assumir a forma furiosa, haverá acessos de alucinação; o animal fica parado, late, abocanha moscas inexistentes, rasga almofadas, tapetes e cortinas, arranha o chão e come terra.

O som do latido torna-se rouco e abafado, a nota final é bastante aguda e a boca não se fecha totalmente. Tais modificações no latido constituem um sinal bem grave. Em certos casos, o cão tem tendência a fugir, abandonando a casa do dono. (…) É nessa época que o animal se torna mais perigoso. Depois surgem fenômenos de paralisia: as pernas posteriores ficam enfraquecidas e o andar incerto. O cão pára na beira do caminho e ainda é perigoso nos momentos de alucinação; posteriormente a fraqueza se acentua, a respiração torna-se irregular, ele se deita e a morte ocorre quatro ou seis dias contados do início dos sintomas”.
 
Etapas do calvário

A morte dos seres humanos mordidos por um lobo ou por um cão raivoso não era menos tormentosa. O cura de Créancey, no departamento de Haute-Saône, relatou, em texto encontrado nos registros paroquiais, as etapas do calvário experimentado por alguns habitantes da aldeia vítimas da raiva: “Na quinta-feira, 16 de junho de 1783, um lobo raivoso entrou nos limites de Créancey. Era um macho extraordinariamente grande: quando ereto, podia morder até quase uma altura de 2 metros. A primeira pessoa que ele atacou foi Pierre Bouteille, um vinhateiro de 29 anos, forte e vigoroso, mordendo-o na perna, no peito e no braço. O primeiro acesso de raiva de Pierre Bouteille se deu em 22 de julho, quando estava na casa da mãe. Ao olhar um pequeno regato, ficou assustado e sentiu todo o corpo estremecer. Voltou então para casa e tentou beber para recuperar o equilíbrio, mas não conseguiu: seu terror aumentou. Deitou-se e não pôde conter os movimentos que o agitavam. No dia 23, por volta das 2 horas da manhã, pressentiu que teria acessos de fúria. Pediu então que fosse amarrado, mas isso apenas assustou os presentes, que decidiram fugir. Somente a esposa permaneceu com ele. A fúria temida ocorreu e ele fez de tudo para afastar a mulher, que não queria deixá-lo sozinho. Começou então a quebrar em seu quarto tudo o que podia: atravessou o vidro da janela com o punho, ensangüentando-se todo, arrancou os caixilhos e batentes, estraçalhou as madeiras e jogou tudo para fora. Destruiu tudo com uma só mão, já que a outra segurava um crucifixo. O pastor chegou e aproximou-se da porta fechada, (…) e conseguiu persuadi-lo de que, para não se matar e não matar a outros, era preciso tomar algumas precauções. Com uma corda, ele foi amarrado nas barras da janela.
Durante a operação houve acessos de fúria: Pierre estremecia e emitia gritos que assustavam a todos. Quando a fúria diminuiu, amarraram-lhe as pernas e os braços, e o deitaram numa cama de palha (…). Enquanto era amarrado, Pierre Bouteille dizia: ‘Tomem cuidado para que eu não os arranhe’ e fechava os punhos com toda força para evitar que isso acontecesse. Até o meio-dia passou maus momentos. Por fim, ficou fraco, babou e expirou por volta do meio-dia e meia, sem se desfigurar muito. (…) Foi sepultado em 24 de julho”.

A religião era também um recurso contra a doença, considerada diabólica. Os que cruzavam um cachorro ou um lobo raivoso deviam, preventivamente, “rezar cinco pais-nossos, cinco ave-marias, fazer duas vezes o sinal da cruz e recitar o glória ao pai”. A evocação de Santo Huberto impunha-se a todas as pessoas mordidas por um animal infectado.

Na Idade Média, a raiva era designada pela expressão “mal de Santo Huberto”. Os pacientes, caso pudessem, deviam ir em peregrinação ao mosteiro de Andage, para onde haviam sido transferidas as relíquias do apóstolo de Ardenas. No leste da França, a abadia de Rosières era considerada um local de cura dos raivosos. Os monges dispunham de duas cruzes, que aqueciam. Uma delas destinava-se aos seres humanos, a outra aos animais. O oficiante aplicava a cruz apropriada na mordida pronunciando a fórmula “Per merita Dionisii et Huberti sanet te Dominus” [Pelos méritos de Dionísio e de Huberto, que o Senhor te cure], enquanto o doente rezava cinco pais-nossos.

Felizmente, nem sempre as vítimas de mordidas de lobos ou de cães terminavam a vida de maneira trágica. Para várias delas, muitas vezes o mal era imaginário. Uma lenda popular na cidade de Arbois conta a respeito a seguinte anedota. Gavignon, natural de Salin-les-Bains, era um fanfarrão, como todas as pessoas de sua região (os moradores de Arbois e de Salin-les-Bains sempre zombaram uns dos outros). Assim, Gavignon gabava-se nos albergues de que não temia nada nem ninguém. Certo dia, quando limpava as vinhas, ele viu um grupo de crianças que fugiam assustadas de um grande cão. Corajoso, pegou o enxadão e golpeou o animal.
Este reagiu e contra-atacou. Percebendo a determinação do cão, o vinhateiro compreendeu que só restava fugir e tentou subir em uma macieira. Quando ele já alcançava os primeiros ramos e se acreditava salvo, o cão deu um prodigioso salto e cravou os dentes na parte mais carnuda do corpo do adversário, que perdeu assim um bom bocado de carne.

Sangrando, sofrendo e gemendo, o infeliz Gavignon foi obrigado a esperar horas em seu refúgio antes que seu cruel inimigo abandonasse o local. Felizmente, as crianças já haviam dado o alarme. Um caçador abateu então o cão com um fuzil e ajudou a vítima a descer da árvore. Um médico foi chamado para atender Gavignon e examinou também o cadáver do cão, concluindo que este era são: para prová-lo, comeria o animal! Gavignon não ficou convencido com o diagnóstico e permaneceu na cama por várias semanas. Isto valeu-lhe o apelido de “traseiro sem raiva”, expressão que dá também o título a esta historieta que ainda era narrada em Arbois no século passado.
Pasteur certamente ouviu a história na infância. E ficou impressionado quando, em outubro de 1831, um lobo mordeu animais e pessoas na região de Arbois. Ele viu então um habitante da cidade, chamado Nicole, ser cauterizado com ferro quente em uma forja situada perto da casa da família do menino que depois seria cientista.

Essas lembranças estavam em sua memória quando realizou as pesquisas sobre a raiva, pesquisas cujo êxito permitiram à humanidade lutar contra essa terrível doença que custara a vida de tantas pessoas.

 

REMÉDIOS CASEIROS
Até os resultados obtidos pelos trabalhos de Louis Pasteur, os remédios empregados para combater a raiva eram freqüentemente cruéis e bizarros. Segundo as crenças populares, o tratamento mais eficaz era por meio do fogo. Uma vez contaminado, o paciente devia ir o mais rápido possível à oficina de um ferreiro para que a ferida fosse queimada com um ferro quente. Amarrada, dominada por fortes assistentes e na presença de curiosos horrorizados, a vítima era “operada” pelo ferreiro impassível, que cauterizava a mordida o mais profundamente possível, sem se importar com os gritos de dor provocados. De fato, o perigo de morte iminente alimentava na época o estoicismo necessário para enfrentar esse desumano tratamento. Em artigo publicado no Le Journal des Connaissances Utiles (Jornal dos Conhecimentos Úteis) de 18 de setembro de 1880, recomendavam-se as seguintes receitas caseiras para pessoas que haviam sido mordidas: “Citemos o caso do doutor Bisson, que, ao sentir os primeiros sintomas do terrível mal, tomou um banho de vapor quente, prolongado até o esgotamento de suas forças, e conseguiu assim se restabelecer. Há ainda o caso de um homem que, tomado de um primeiro acesso de raiva, foi fechado num quarto que continha uma provisão de cebolas cruas. Ele devorou uma quantidade considerável desses bulbos e ficou curado.

Consumida nessa dose, a cebola deve produzir uma revulsão intensa nas mucosas. É provável que este não seja o primeiro milagre produzido pelo legume, já que os egípcios, que sempre honravam tudo o que lhes era útil, adoravam a cebola”. O professor Georges Charles Maurice Curasson (1889-1970), antigo funcionário público da cidade de Poligny, descobriu o seguinte tratamento em uma coletânea de receitas datada do século XVII e elaborada por um boticário de sua comuna: “Pegue uma galinha viva, depene seu traseiro e aplique-o sobre o local afetado. Mantenha-a assim por longo tempo e aperte seu pescoço até que a galinha abra o traseiro e ‘extraia’ assim o veneno. Depois, moa nozes com sal para fazer um emplastro, que deve ser aplicado no lugar. A galinha deve ser queimada para que nenhuma pessoa a coma e se torne assim raivosa”.

 

conselho-de-medicina-veterinaria-de-sp-abre-concursoVETERINÁRIA

A primeira escola de medicina veterinária da época moderna, com uma turma de oito alunos, foi criada em Lyon, na França, por Claude Bourgelat, em 1762. A iniciativa contava com o respaldo de um édito assinado pelo rei Luís XV.  Ele mesmo, quatro anos depois, instalaria outra, dessa vez em Paris. Na esteira desses dois centros pioneiros, surgiram até o final do mesmo século uma série de outros, com igual finalidade, em diferentes países da Europa, a começar pelo de Viena, na Áustria, em 1768.

 

Por Andre Besson Tradução de Alexandre Massella

 

 

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