Fissurado por vozes femininas, Hermínio Bello de Carvalho conheceu a de Áurea Martins por intermédio de Elizeth Cardoso. De fã virou amigo; de amigo, produtor. Ela é uma das personagens do livro que Hermínio está escrevendo sobre cantoras brasileiras. O que vem a seguir é um trecho do capítulo sobre Áurea.
“O cenário é meu apartamento. (…) Ela beberá um copo de água, respirará fundo – e aí vão rolar as histórias, as lembranças, de como venceu há 45 anos o programa A Grande Chance, do Flávio Cavalcanti. (…) E aí veio uma quase invisibilidade, menos para aqueles que frequentavam a noite. (…) É preponderante a qualidade de tudo que sua voz expele; literalmente expele. Se esfrega nas palavras, porque o hábito da leitura deu-lhe mais essa qualidade: a de se tornar íntima dos versos que canta.
Leia a íntegra do texto:
Sabe-se, ao chegar, quando está contrafeita: os óculos escuros pendem até a ponta do nariz, destacando os olhos que faíscam, chamuscam, trovejam. Adentra a casa já cuspindo marimbondos. Volta e meia carrega ou um bolsão (aliás, de grife) ou uma sacola de supermercado, conforme as circunstâncias. E é nesse matulão que ela transporta suas trapizongas. Se está com boina, dela se desfaz e deixa-a num canto do sofá. O ombro direito meio pendido, senta-se esbaforida, dou-lhe um copo d’água e ela destrava a língua. Conta um caso qualquer que se passou há pouco com ela na rua, alguém a desfeiteou ou percebeu-se desfeiteada, não importa. Solta alguns palavrões, e há que se dar um tempo para que ela se recomponha e relate o acontecido.
O acontecido, no caso, não tem muita importância para este relato. E quando se acalma, abre um sorrisão com dentes perolizados, alvíssimos, próprios, e temos de volta nossa amada Áurea Martins em toda sua plenitude.
Estamos na metade de 2010. O cenário é meu apartamento, que estará com pelo menos dois ou três outros amigos de Áurea, quase sempre músicos, até porque haverá ensaio e lá a Áurea dá um beijo na amiga Lucia, que prepara o regabofe. Beberá um copo de água, respirará fundo – e aí vão rolar as histórias, as lembranças, de como venceu há 45 anos o programa “A grande chance” do Flávio Cavalcanti, Maysa estendendo-lhe uma rosa, Bibi Ferreira no júri, e é bom lembrar que ela ainda era Áldima, na pia batismal. Paulo Gracindo é que a batizou artisticamente como Áurea.
E aí veio uma quase invisibilidade, menos para aqueles que frequentavam a noite. A “crooner de voz rouca” estava lá, hospedando o repertório de outras cantoras. Teve até que aprender umas canções em inglês para atender a freguesia. É eclética no bom sentido. É preponderante a qualidade de tudo que sua voz expele; literalmente expele. Se esfrega nas palavras, porque o hábito da leitura deu-lhe mais essa qualidade: a de se tornar íntima dos versos que canta.
“Não vai rolar um sambinha?”, perguntam-lhe às vezes, porque afinal a negona está ali para entreter, deve ser eclética, se possível tocar um reco-reco ou puxar um partido alto para a platéia acompanhar e, de lambujem, dar uma reboladinha. Ela, desaforada, responde à provocação, no mais das vezes destituída de maldade, com “Janelas abertas”, de Tom e Vinicius. E aí dá-se o deslumbre.
Foi ao mundo. Trabalhou com a quase totalidade dos instrumentistas brasileiros. Já deu “canja” com Carmen McRae, Toots Thieleman, e uma das fases mais brabas foi quando cantava nas boates da zona sul, com outros operários de calibre: Alcione. Emílio Santiago, Djavan, Dafé. Era preciso garantir o pão de cada dia. Época, também, quando foi descoberta por Elizeth – que saía de casa, coisa rara!, para ouvi-la onde estivesse se apresentando. A biografia da Divina, escrita por Sergio Cabral, não me deixa mentir. Outra admiradora: Zezé Gonzaga, com quem dividiu um espetáculo sobre Lupicínio Rodrigues, mais o piano-e-voz de Zé-Maria Camiloto Rocha, que produziria comigo o seu terceiro disco.
O primeiro, ela o fez com Luizinho Eça, e na companhia do poeta Paulo Mendes Campos. Há uns dois ou três anos, o segundo disco com produção de João de Aquino, e mais recentemente o “Até sangrar”- em 45 anos de carreira, sua discografia registra apenas três títulos.
Quando vejo Áurea Martins sair de sua quase invisibilidade depois daquele primeiro lugar na “Grande chance”, e acompanhar sua subida ao palco para receber, ovacionada, o prêmio de melhor cantora de 2009, fico lamentando que nem Elizeth nem Zezé Gonzaga, suas mais fiéis admiradoras, não estivessem ali.
Senhores: estou falando de Áurea Martins, essa negona de cara enfezada ou de sorriso estonteante, conforme o momento assim o exigir, estou falando de uma das grandes cantoras brasileiras, que não ganha primeiras páginas nos segundos cadernos culturais, mas que cumpre sua trajetória se espelhando naqueles duas magníficas senhoras, que hoje pressinto iluminarem seus passos.
Hermínio Bello de Carvalho, 75, é poeta, compositor e produtor musical
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