Se estivesse vivo, Tom Jobim estaria completando 90 anos de idade nesta semana, quarta-feira (25). Em sua homenagem, o Portal compartilha um bate papo entre ele e a escritora Clarice Lispector publicado quando Antônio Carlos Jobim tinha apenas 41 anos de idade, em 21/9/1968 para a revista Manchete. A fonte do diálogo entre os dois artistas é do site Templo Cultural Delfos. Leia abaixo:
Clarice Lispector e Tom Jobim, no lançamento do livro “A maça no escuro”
Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi o meu padrinho no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu livro A maça no escuro. E ele fazia brincadeiras: segurava o livro na mão e perguntava: quem compra? Quem quer comprar?
Para este diálogo, marcamos às seis da tarde: às seis e trinta e cinco tocavam a campainha da porta. E era o mesmo Tom que eu conhecia: bonito, simpático, com um ar puro malgré lui, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na mesa e começamos quase que imediatamente a entrevista.
– Como é que você encara o problema da maturidade? É terrível ter quarenta anos?
– Tem um verso do Drummond que diz: “A madureza, está horrível prenda…” não sei, Clarice, a gente fica mais capaz, mas também mais exigente.
– Não faz mal, Tom, a gente exige bem.
– Com a maturidade a gente passa a ter consciência de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os instintos, os mais espontâneos, passam pelo filtro. A polícia do espaço está presente, essa polícia que é a verdadeira polícia da gente. Tenho notado que a música vem mudando com os meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro Municipal. Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da leitura dos livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de erudito e mais sério fica na gaveta.
Que não haja mal-entendido: a música popular considero-a seriíssima. Será que hoje em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto, tendo hábito de ir para a cama com um livro antes de dormir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da humanidade – o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você acha?
– Sofro se isto acontecer, que alguém me leia apenas do método vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção e ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo, uma atenção completa. Uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção.
– Mais aí você está se negando, Clarice!
– Não, meus livros felizmente para mim não são superlotados de fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivíduo. Há quem diga a literatura e a música vão acabar. Sabe quem disse? Henry Miller. Não sei se ele queria dizer para já ou para daqui a trezentos ou quinhentos anos. Mas eu acho que nunca acabarão.
Riso feliz de Tom:
– Pois eu, sabe, também acho!
– Acho que o som da música é imprescindível para o ser humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a música, duas coisas das mais altas que nos elevam do reino dos macacos, do reino animal.
– E mineral também, e vegetal também! (Ele ri) Acho que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o teu O búfalo e a Imitação da rosa.
– Sim, mas é a morte às vezes.
– A morte não existe, Clarice. Tive uma (uma com agá: huma) experiência que me revelou isso. Assim como também não existe o eu nem o euzinho nem o euzão. Fora essa experiência que não vou contar, temo a morte vinte e quatro horas por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.
– Tem alguma coisa além do eu, Tom.
– Além de tudo (ri) e vivam os estudantes! Se eu não defender os estudantes, estou desprotegendo meus filhos. Se esse eco do sucesso não nos interessa em vida, muito menos depois da morte. Isso é o que eu chamo de mortalidade.
– Você acredita em reencarnação, Tom?
– Não sei. Dizem os hindus que só entende de reencarnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. Evidentemente não é meu ponto de vista: se existe reencarnação só pode ser por um despojamento.
Dei-lhe então a epígrafe de um de meus livros: é uma frase de Bernard Berenson, crítico de arte: “Uma vida completa talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não eu que não resta um eu para morrer.”
– Isto é muito bonito, é o despojamento. Caí numa armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos qualquer passagem de um eu para outro, o que significa reencarnação, então a estamos negando.
– Não estou entendendo nada do que nós estamos falando, mas faz sentido. Como podemos, Tom, falar do que não entendemos. Vamos ver se na próxima reencarnação nós dois nos encontramos mais cedo. Que é que você acha do fato da liderança do mundo estar hoje nas mãos dos estudantes?
– Acho que não podia ser de outra forma e que venham os estudantes. Vladimir sabe disso.
– A sociedade industrial organiza e despersonaliza demais a vida. Você não acha, Tom, que está reservado aos artistas o papel de preservar a alegria do mundo? Ou a consciência do mundo?
– Sou contra a arte de consumo. Claro, Clarice, que eu amo o consumo… Mas do momento que a estandardização de tudo tira a alegria de viver, sou contra a industrialização. Sou a favor do maquinismo que facilita a vida humana, jamais a máquina que domina a espécie humana. Claro, os artistas devem preservar a alegria do mundo. Embora a arte ande tão alienada e só dê tristeza ao mundo. Mas não é culpa da arte porque ela tem o papel de refletir o mundo. Ela reflete e é honesta. Viva Oscar Niemeyer e viva Villa-Lobos! Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos Jobim! A nossa, Clarice, é uma arte que denuncia. Tenho sinfonias e músicas de câmara que não vêm à tona.
– Você não acha que é dever seu o de fazer a música que sua alma pede? Pelas coisas que você disse, suponho que significa que o nosso melhor está dito para as elites?
– Evidentemente que nós, para nos expressarmos, temos que recorrer à linguagem das elites, elites estas que não existem no Brasil… Eis o grande drama de Carlos Drummond de Andrade e Villa-Lobos.
– Para quem você faz música e para quem eu escrevo?
– Acho que não nos foi perguntado nada a respeito, e, desprevenidos, ouvimos no entanto a música e a palavra, sem tê-las realmente aprendido de ninguém. Não nos coube a escolha: você e eu trabalhamos sob uma inspiração. De nossa ingrata argila de que é feito o gesso. Ingrata mesmo para conosco. A crítica que eu no faria, Clarice, nesse confortável apartamento do Leme, é de sermos seres rarefeitos que só se dão em determinadas alturas. A gente devia se dar mais, a toda hora, indiscriminadamente. Hoje quando leio uma partitura de Stravinsky ainda mais sinto uma vontade irreprimível de estar com o povo, embora a cultura jogada fora volte pelas janelas – estou roubando C.D.A.
– Por que nós todos somos parte de uma geração quem sabe se fracassada?
– Não concordo absolutamente! – disse Tom.
– É que eu sinto que nós chegamos ao limiar de portas que estavam abertas – e por medo ou pelo que não sei, não atravessamos plenamente essas portas. Que no entanto têm nelas já gravadas nosso nome. Cada pessoa tem uma porta com seu nome gravado, Tom, e é só através dela que essa pessoa perdida pode entrar e se achar.
– Batei e abrir-se-vos-á.
– Vou confessar a você, Tom, sem o menor vestígio de mentira: sinto que se eu tivesse tido coragem mesmo, eu já teria atravessado a minha porta, e sem medo de que me chamassem de louca. Porque existe uma nova linguagem, tanto a musical quanto a escrita, e nós dois seríamos os legítimos representantes das portas estreitas que nos pertencem. Em resumo e sem vaidade: estou simplesmente dizendo que nós dois temos uma vocação a cumprir. Como se processa em você a elaboração musical que termina em criação? Estou simplesmente misturando tudo, mas não é culpa minha, Tom, nem sua: é que esta entrevista foi se tornando meio psicodélica.
– A criação musica em mim é compulsória. Os anseios de liberdade se manifestam.
– Liberdade interna ou externa?
– A liberdade total. Se como homem fui um pequeno-burguês adaptado, como artista me vinguei nas amplidões do amor. Você desculpe, eu não quero mais uísque por causa de minha voracidade, tenho que é que beber cerveja porque ela locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede a embriaguez súbita. Gosto de beber só de vez em quando. Gosto de tomar uma cerveja mas de estar bêbado não gosto.
(Foi devidamente providenciada a ida da empregada para comprar cerveja.)
– Tom, toda pessoa muito conhecida, como você, é no fundo o grande desconhecido. Qual é a sua face oculta?
– A música. O ambiente era competitivo, e eu teria que matar meu colega e meu irmão para sobreviver. O espetáculo do mundo me soou falso. O piano no quarto escuro me oferecia uma possibilidade de harmônio infinita. Esta é a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez me levaram inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holofotes do Carnegie Hall. Sempre fugi do sucesso, Clarice, como o diabo foge da cruz. Sempre quis ser aquele que não vai ao palco. O piano me oferecia, de volta da praia, um mundo insuspeitado de ampla liberdade – as notas eram todas disponíveis e eu antevi que se abriam os caminhos, que tudo era lícito, e que se poderia ir a qualquer lugar desde que se fosse inteiro. Subitamente, sabe, aquilo que se oferece a um menor púbere, que o grande sonho de amor estava lá e que este sonho tão inseguro era seguro, não, Clarice? Sabe que a flor não sabe que é flor. Eu me perdi e me ganhei, enquanto isso sonhava pela fechadura os seios de minha empregada. Eram lindos os seios dela através do buraco da fechadura.
– Tom, você seria capaz de improvisar um poema que servisse de letra para uma canção?
Ele assentiu e, depois de uma pequena pausa, me ditou o que se segue:
Teus olhos verdes são maiores que o mar.
Se um dia fosse tão forte quanto você
eu te desprezaria e viveria no espaço.
Ou talvez então eu te amasse.
Ai! que saudades me dá da vida
que nunca tive!
– Como é que você sente que vai nascer uma canção?
– As dores do parto são terríveis. Bater com a cabeça na parede, angústia, o desnecessário do necessário, são os sintomas de uma nova música nascendo. Eu gosto mais de uma música quanto menos eu mexo nela. Qualquer resquício de savoir faire me apavora.
– Tom, Gauguin, que não é meu predileto, disse no entanto uma coisa que não se deve esquecer, por mais dor que ela nos traga. É o seguinte: “Quando tua mão estiver hábil, pinta com a esquerda, quando a esquerda ficar hábil, pinta com os pés.” Isso responde ao seu terror do savoir faire.
– Para mim a habilidade é muito útil mas em última instância a habilidade é inútil. Só a criação satisfaz. Verdade ou mentira, Clarice, eu prefiro uma forma torta que diga, do que uma forma hábil que não diga.
– Você é quem escolhe os intérpretes? e os colaboradores?
– Quando posso escolher intérpretes, escolho. Mas a vida veio muito depressa. Gosto de colaborar com que eu amo, Vinícius, Chico Buarque, João Gilberto, Newton Mendonça, Dolores Duran. E você?
– Faz parte da minha profissão estar mesmo sempre sozinha, sem colaboradores e intérpretes. Escute, Tom, todas as vezes em que eu acabei de escrever um livro ou um conto, pensei com desespero e com toda a certeza de que nunca mais escreveria nada. Você, que sensação tem quando acaba de dar à luz uma canção?
– Exatamente o mesmo. Eu sempre penso, Clarice, que morri depois das dores do parto.
– Vou agora lhe fazer as minhas três perguntas clássicas. Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais importante para a pessoa como indivíduo? E o que é amor?
– A coisa mais importantes do mundo é o amor. Segunda pergunta: a integridade da alma, mesmo que no exterior ela pareça suja. Quando ela diz que sim, é sim, quando ela diz que não, é não. E durma-se com um barulho desses. Apesar de todos os santos, apesar de todos os dólares. Quanto ao que é o amor, amor é se dar, se dar, se dar. Dar-se não de acordo com o seu eu – muita gente pensa que está se dando e não está dando nada – mas de acordo com o eu do ente amado. Quem não se dá, a si próprio detesta, e a si próprio se castra. Amor sozinho é besteira.
– Houve algum momento decisivo na sua vida?
– Só houve momentos decisivos na minha vida. Inclusive ter de ir, aos 36 anos, aos Estados Unidos, por força do Itamaraty, eu que gostava já nessa época de pijama listrado, cadeira de balanço de vime, e o céu azul com nuvens esparsas.
– Muitas vezes, nas criações em qualquer domínio, pode-se notar tese, antítese e síntese. Você sente isso nas suas canções? Pense.
– Sinto demais isso. Sou um matemático amoroso, carente de amor e de matemática. Sem forma não há nada. Mesmo no caótico há forma.
– Quais foram as grandes emoções de sua vida como compositor e na sua vida pessoal?
– Como compositor nenhuma. Na minha vida pessoal, a descoberta do eu e do não eu.
– Qual é o tipo de música brasileira que faz sucesso no exterior?
– Todos os tipos. O velho mundo, Europa e Estados Unidos estão completamente exauridos de temas, de força, de virilidade. O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma extremamente livre. Ele conduz à criação, ele é conivente com os grandes estados de alma.
Fonte:
– LISPECTOR, Clarice. Clarice na cabeceira: jornalismo. 1º Edição. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
[Originalmente publicado em: Revista “Manchete”, 21 de setembro de 1968.
Do Portal Vermelho, com Templo Cultural Delfos
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