60 anos após sua morte, Frida Kahlo se renova como mito

Os números oficiais ainda estão por ser divulgados, mas ninguém tem dúvidas de que a exposição será a recordista de público das últimas temporadas: mesmo os franceses, que evitam a todo custo os locais turísticos superlotados, enfrentaram as filas de acesso à mostra, que duravam em média duas horas, sob sol, chuva e temperaturas muito baixas.

Diego Rivera (1886-1957), claro, tem luz própria. Em seu tempo, retratou a paixão revolucionária e internacionalista, ao apresentar ao mundo uma visão do proletariado como protagonista da sua história. A solidez de sua obra o transformou em um dos mais reconhecidos artistas plásticos. Entretanto, embora os organizadores aleguem que o diferencial da mostra é justamente unir a arte do casal, ninguém tem dúvidas de que Frida Kahlo (1907-1954) é quem sustenta o mito capaz de comover fãs de perfis e nacionalidades tão diversas.

É um dos seus famosos autorretratos que ilustra o cartaz promocional da exposição. São suas obras que vendem como água estampadas em camisetas, imãs de geladeira e souvenirs de toda espécie pela cidade. Nas livrarias francesas, são as várias versões de sua biografia que ocupam lugar de destaque nas vitrines.

É a edição do fac símile de seu diário que estimula a cobiça dos fãs. Se a exposição deixa uma certeza, é a de que, mesmo 60 anos após a morte do ícone mexicano das artes, da esquerda e do feminismo, o fenômeno da “fridolatria” continua vivo, forte e em ascensão.

A resposta para a supremacia de Frida sobre Diego no gosto do público pode estar em sua trajetória. Filha de um fotógrafo judeu que trocou a Alemanha pelo México, ela enfrentou a poliomielite aos 6 anos, teve o corpo destroçado por um acidente de automóvel aos 18, e vivenciou com intensidade o infortúnio da dor após se casar com Rivera, reconhecido conquistador que traiu não só a esposa, mas também o Partido Comunista e suas diretrizes políticas. Nem a própria irmã de Frida, Cristina Kahlo, escapou das teias do homem com quem a artista foi casada por 25 anos.

Frida também amargou a frustração de não poder gerar um filho: em função das sequelas do acidente, foi obrigada a abortar sucessivas vezes. Sua biografia registra que, ao longo da vida, ela passou por pelo menos 27 cirurgias. A primeira internação foi para curar a poliomielite. A última, pouco antes de morrer, para amputar a perna direita, que começava a gangrenar. No seu diário, ela desenhou os pés desgarrados do corpo, com a legenda: “pés para que os quero se tenho asas para voar”.

Apesar da deficiência física e das dores dilacerantes, ela também teve uma vida sexual bastante agitada e atípica para sua época, o que a fez galgar o posto de ícone do feminismo mexicano. Foram inúmeros casos, antes e após o casamento, inclusive homossexuais. O mais célebre, e o que coroou seu envolvimento com a paixão proletária e a revolução comunista, foi com o líder russo Leon Trotski, que se hospedou na sua residência, a famosa Casa Azul, enquanto viveu exilado no país.

Mas a diferença entre as artes de Diego e Frida também pode explicar muito sobre o mito que ela se tornou. Enquanto ele retratou, ainda que com vigor especial, as paixões revolucionárias de sua época, emolduradas pelo muralismo que dominava o México, Frida encontrou um estilo único e fez da sua arte uma espécie de exorcismo: pintou a paixão pela cultura popular mexicana e pela revolução, mas também expôs seus infortúnios, dores, desgraças, abortos, tristezas, desconsolos.
Tal como Diego, revelou em suas telas seu tempo histórico. Mas, ao contrário dele, exibiu também suas vísceras.

Em 1938, após expor em Nova York, Frida soube que André Breton a classificara como surrealista em ensaio que correu o mundo. Não hesitou em corrigi-lo:

“Pensavam que eu era uma surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava a minha própria realidade”. Nos atuais livros de história da arte e nas muitas biografias lançadas e relançadas nos últimos anos, ninguém mais se arrisca atrelá-la a nenhuma corrente. Sua arte se sobrepôs às correntes.

A mostra do L´Orangerie reuniu cerca de 30 obras de cada um dos dois amantes, a maioria delas provenientes do Museu Dolorès Olmedo, do México, e algumas inéditas na capital francesa, onde a última exposição de Frida havia ocorrido há 15 anos. Na primeira sala, telas da juventude de Diego, como “A noite na Vila”, de 1907, se impunham em meio às reproduções dos seus grandes murais que sobrevivem em prédios públicos do México e, também, dos Estados Unidos. Entre eles, chamava a atenção o que Diego retratou Frida entregando armas a camponeses mexicanos.

A sala seguinte exibia as primeiras telas que Frida pintou ainda no hospital, durante a longa recuperação do acidente, e nos anos seguintes, quando arrematou seu estilo: retratos de familiares e amigos, como o da irmã Cristina, que se envolveria mais tarde com o seu Diego. Havia também obras de pegada mais social, como a expressiva e pouco conhecida “O ônibus”, de 1929.

Na terceira e principal sala, perfilavam-se obras de Frida e Diego, lado a lado. E, neste caso, ele saia em visível desvantagem. Era neste ambiente que se encontravam alguns dos mais famosos autorretratos da artista que, segundo o Le Monde, alcançam, hoje, cifras tão altas quanto à Monalisa, de Leonardo Da Vinci.

Entre eles, o visceral “A coluna partida”, de 1944, o seu quadro mais conhecido e celebrado pela crítica. E também o sensual “Autorretrato com vestido de veludo”, de 1926, a obra que ilustra os materiais promocionais da mostra.

O próprio fenômeno da “fridolatria” ganhou espaço na exposição, com a recuperação do quanto a mexicana influenciou e ainda influencia não só o pensamento, mas também a música, o cinema, a literatura, o designer, a moda.

Há referências, por exemplo, ao filme “Frida”, sucesso de público de 2002 até hoje, em que ela é interpretada por Salma Hayek e Diego, por Alfred Molina. E também ao espartilho desenhado por Jean Paul Gaultier, sob sua inspiração.

Na loja do Museu, mais filas. O público queria levar para casa não só o catálogo da exposição e toda sorte de livros sobre a vida e a obra da artista, mas também souvenirs que o aproximava do ícone. Réplicas das roupas, colares, lenços e bolsas da mexicana faziam surpreendente sucesso entre fãs de todas as nacionalidades. Paris se transformava toda ela em Frida Kahlo.
Por Najla Passos*, na Carta Maior*

*é jornalista

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