Ricardo Piglia mais se assemelha – na esteira de Borges, Vila-Matas, Roberto Bolaño e outros escritores contemporâneos – a um ávido e atento leitor que escreve, e se propõe a escrever colocando em questão sobretudo a própria literatura, repetindo-a, citando-a, para daí extrair sua singularidade como criador, como artista.
Por Bruno Lorenzatto
Respiração Artificial, um dos principais livros do escritor argentino, publicado em 1980, é uma narrativa em parte epistolar, labiríntica e com diversos narradores (os autores das cartas). O livro repete a forma e os temas de um romance que um personagem do próprio livro pretendia escrever. Procedimentos desse tipo criam ao longo do texto um jogo de espelhos falsos que multiplicam as interpretações possíveis, não permitindo tirar conclusões definitivas sobre a história, nem sobre os personagens que a contam – aquele que lê participa ativamente do texto. Há incursões pela história argentina, crítica literária, e reflexões filosóficas. Desprovido de linearidade temporal, o livro faz com o leitor se perca em épocas e lugares distintos enquanto busca um pouco inutilmente juntar os fragmentos díspares que o compõem.
Tudo se passa como se Ricardo Piglia fosse também um dos narradores do romance, presente na voz de Emilio Renzi, personagem constante em sua obra e narrador de, entre outros livros, Os diários de Emilio Renzi (ele também um escritor argentino com dados biográficos parecidos com os de Piglia), última publicação do autor antes de morrer, no ano passado. Renzi é então um personagem que funciona como um duplo de Ricardo Piglia, uma repetição, um simulacro. Este fato indica um viés de autoficção que percorre seus textos, ou seja, a insinuação ambígua da presença do autor “real” no interior de seu trabalho ficcional.
“Viver em terceira pessoa” é a ideia central que orienta a conduta de Marcelo, um dos personagens de Respiração Artificial – princípio retomado mais tarde, praticamente nos mesmos termos, em Os diários de Emilio Renzi. “Pensar contra si próprio” como um método “quase infalível de lucidez”. “A primeira coisa que pensamos está sempre errada, (…) é um reflexo condicionado.” Em outro sentido, é o princípio que parece colocar em prática o próprio Piglia em seu trabalho literário quando pensamos em Emilio Renzi, o personagem Renzi, que, como sabemos, é Piglia ficcionalizado. Pois o que é isso senão uma forma do autor falar de si na terceira pessoa, ou mesmo, ainda que por metáfora, de viver em terceira pessoa? Procedimento literário, mas também ético, como veremos.
Se “a primeira coisa que pensamos está sempre errada”, é porque os seres humanos se encontram pensando no âmbito dos reflexos condicionados, “somos adestrados durante um tempo excessivamente longo na estupidez, e no fim ela se transforma numa segunda natureza”, é a tese de Marcelo, contada por Renzi. Nesse sentido, algo como a liberdade nunca poderia ser definida como a capacidade de fazer o que se quer ou o que se tem vontade, pois o que queremos ou pensamos que queremos a princípio está determinado por um condicionamento específico proveniente da cultura e incorporado pelo indivíduo. De modo que a liberdade seria então a capacidade de não aceitar ou não agir a partir do condicionamento com o qual nos identificamos, questionando sistematicamente os pensamentos que nos parecem mais evidentes à primeira vista – donde poderíamos estranhamente concluir: viver em terceira pessoa significa ser livre.
A parte final de Respiração Artificial é notável não tanto pelo conteúdo das ideias filosóficas engendradas com perspicácia, mas sobretudo pela forma como o autor propõe um ensaio que relaciona história, filosofia e literatura, na voz de um dos personagens, misturando com virtuosismo dados ficcionais e históricos. Para isso, toma como uma de suas bases a hipótese de um encontro juvenil entre Kafka e Hitler, a partir do qual Kafka – profundamente impactado e horrorizado com as ideias do então jovem pintor frustrado Adolf – teria se inspirado para criar o horror em sua literatura antes que ninguém, a não ser ele mesmo, Kafka, pudesse vislumbrar de modo visionário esse horror e que isso pudesse se tornar real com a ascensão política de alguém como Hitler. Uma articulação, além disso, segundo a qual o Mein Kampf seria a culminação filosófica do subjetivismo inaugurado por Descartes, tendo em Heidegger o símbolo maior da adesão da filosofia ao nazismo (o que lembra a tese de Derrida sobre Heidegger, em que é estabelecida uma relação entre a filosofia alemã e o nazismo).
De todo modo, nessa longa trajetória do racionalismo ocidental, é certo que o eu figura como fonte privilegiada das verdades. “Um filósofo sentado diante da lareira, (…) não é essa a situação básica? É totalmente lógico (…) que quando o filósofo se levanta de sua poltrona, depois de ter se convencido de que é o proprietário exclusivo da verdade além de toda dúvida, o que faz é pegar uma daquelas achas inflamadas e dedicar-se a incendiar com o fogo de sua razão o mundo inteiro. Aconteceu quatrocentos anos depois, mas era lógico, era uma consequência inevitável.” Em Hitler, o método da dúvida – proposto por Descartes – se converteria no método da certeza assegurada pelo eu, levando às últimas consequências o ideário e a razão burguesa europeia em toda sua monstruosidade. Enfim, talvez seja esse outro motivo – político – pelo qual seja preciso viver contra o eu, ou como diz Piglia, pensar contra si próprio, viver em terceira pessoa.
Fonte: Outras Palavras
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