Conhecer a história do Brasil pode ser algo muito saboroso. Literalmente, uma vez que preparos de comidas típicas muitas vezes preservam sabores históricos, que ajudaram a formar a identidade regional brasileira.
Por Laís Modelli
Não é à toa que as baianas se vestem de branco e colocam o acarajé sobre um tabuleiro
No Piauí, por sua vez, a cajuína é bebida popular que confere identidade às comunidades locais. Feita a partir do suco do caju separado do seu tanino, coado várias vezes em redes ou funis de pano e então cozido em banho-maria em garrafas de vidro até que seus açúcares sejam caramelizados, a cajuína já foi uma bebida de status social, servida como presente de boas vindas aos que retornavam ao Estado, e hoje é usada para consumo familiar ou para ser vendida, gerando fonte de renda.
Resultado de séculos de utilização, em que o caju foi usado de maneira diversa em toda na região – desde os povos indígenas até hoje -, a cajuína envolve um conhecimento popular tão específico e complexo que chega a ser difícil classificá-la para quem nunca experimentou: não se trata de uma bebida alcoólica, nem de um refrigerante e muito menos de um simples suco de caju.
Ao lado da produção tradicional da cajuína no Piauí, o ofício das baianas do acarajé é, assim como a produção artesanal do queijo de Minas, considerado patrimônio imaterial da cultura brasileira, com registro no Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Até o momento, esses são os únicos elementos de nossa culinária registrados pelo órgão. Há outros preparos em fase de avaliação, como a confecção de doces típicos de Pelotas (RS).
Diferentemente de objetos históricos expostos nos museus, os bens imateriais de uma cultura não precisam ser conservados em um lugar para contar sua história – na verdade, eles estão vivos e dinâmicos na sociedade.
“O que define o bem imaterial é justamente sua natureza de se manter autopreservado pelas ações da coletividade e da sociedade”, explica a antropóloga Mariana Cunha Pereira, professora da Universidade Federal de Goiás.
Por isso, de acordo com pesquisadores, reconhecer manifestações regionais é valorizar a identidade dos diversificados grupos que compõem a cultura nacional.
“Vale dizer que o paladar é extremamente resistente a mudanças e, por isso, é também um componente fundamental na definição de identidades e pertencimentos sociais e culturais”, afirma o professor da Universidade Federal Fluminense Daniel Bitter.
De acordo com o professor, o conhecimento associado às comidas de uma região transforma o ato de comer. Alimentar-se daquele prato passa a ser reconhecido pelo grupo como uma referência cultural. “A alimentação, nesse caso, passa a organizar os modos de vida e a visão de mundo desses grupos”, completa Bitter.
A cajuína e o Piauí
Em fevereiro deste ano, o Virado a Paulista – prato à base de arroz, feijão, farinha de milho e carne vermelha e consumido em São Paulo desde a época dos tropeiros – foi declarado patrimônio imaterial do Estado de São Paulo. A receita foi tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico estadual (Condephaat), mas o prato em si não é um patrimônio nacional e nem pode ser registrado pelo Iphan.
O órgão reconhece os modos de preparo, e não as comidas isoladamente, explica o diretor do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan, Hermano Fabrício Oliveira Guanais e Queiroz.
“Endentemos que a cultura imaterial é dinâmica e está em constante mudança, assim como a sociedade. Por isso, não queremos cristalizar uma receita”, diz.
O processo de transformação do caju em cajuína no Piauí também ajuda a entender como funciona a política de patrimônio imaterial do Iphan.
Por ser sazonal, artesanal e rústico – a cajuína não leva nenhum aditivo químico, nem mesmo açúcar – e geralmente feito em comunidades rurais ou em famílias que tenham o caju em abundância, o preparo tradicional da bebida foi reconhecido pelo Instituto como patrimônio imaterial.
“O bem cultural não é o caju nem a cajuína, mas o trabalho das famílias do Piauí empregado na produção da bebida. Ou seja, o que é patrimônio são os saberes seculares, passados de geração a geração de como se apropriar do caju de uma maneira geralmente vista somente no Nordeste”, explica a pesquisadora Pereira.
Mesmo que o caju não seja o elemento tombado pelo Iphan, o reconhecimento dos saberes nordestinos em relação ao manuseio do fruto para a produção da cajuína destaca a importância cultural do caju para o Brasil. Genuinamente brasileiro, o fruto é consumido na região há séculos, desde os povos antigos que habitaram a Terra.
“No primeiro inventário sobre o patrimônio material brasileiro, realizado por Mario de Andrade, há o registro de que o povo Tupinambá, no século 16, já consumia o caju e não só como fruto, mas também na produção de remédios”, aponta a antropóloga.
Além de continuar fazendo parte da culinária das comunidades piauienses, o caju hoje em dia também movimenta a economia da região e organiza o modo de vida da população local, seja em mercados e feiras ou até no quintal de casa.
Um cajueiro, de acordo com Pereira, geralmente é plantado em um local estratégico para oferecer sombra às pessoas. Quando plantado nos quintais das casas, também serve como lugar para as crianças brincarem.
“Além disso, do fruto, extrai-se a castanha, e dela retira-se o óleo. Da fruta carnuda se produz o suco, o doce e a cajuína. E ainda se come in natura, direto do pé ou comprado nas feiras e mercados”, descreve a pesquisadora.
Papel central das mulheres
Igual ao caju e a cajuína, o acarajé não é o patrimônio imaterial registrado no Iphan, e sim o ofício das baianas que o vendem.
Rita Ventura, a coordenadora da Associação Nacional das Baianas de Acarajé, Mingau, Receptivo e Similares, explica que o acarajé, para as baianas, tem significado religioso e de resistência.
O bolinho feito de feijão nasceu na África e veio para o Brasil por meio dos escravos traficados da Nigéria. “O nome original africano do acarajé é ‘akara’. Como as vendedoras negras gritavam nas ruas ‘olha oakarae’, houve a junção dos sons”, explica Ventura.
O “akara”, que significa “bola de fogo”, passou a ser vendido nas ruas da Bahia durante a escravidão por escravas de ganho, um tipo de relação em que a mulher trabalhava de ambulante para trazer dinheiro aos senhores empobrecidos.
Com a abolição, as negras continuaram vendendo o bolinho nas ruas para comprar cartas de alforria e para sustentar a família. Muitas se tornaram chefes de família com a venda do acarajé. Segundo Ventura, até hoje o acarajé está associado a mulheres nessa posição: 70% das atuais baianas da Associação Nacional do ofício são as principais provedoras da família.
“Existe uma relação especial entre alguns grupos de mulheres e profissões ou ofícios relacionados ao cozinhar. Historicamente, no Brasil, ainda que pese nessa situação a desigualdade de gênero, verificamos que o papel das mulheres nos ofícios tradicionais ligados à culinária – que hoje estão principalmente relacionados às comidas de rua – ajudou a formar a cultura de seu povo”, explica Bitter.
“O acarajé está associado predominante às mulheres por ser um ofício passado de mãe para filha por séculos na Bahia. Porém, com o passar dos tempos, muitas baianas não tiveram filhas, somente filhos. Para garantir o sustento da família, principalmente nos últimos anos, foram eles que herdaram o ofício e deram continuidade à atividade”, agrega Ventura.
De acordo com ela, dos 80 mil vendedores de acarajé registrados pela Associação Nacional das Baianas, 10% são homens.
Outra característica social do acarajé é o seu fator religioso: até hoje a iguaria tem posição central no Candomblé, em que é servida como uma oferenda aos orixás.
Tacacá e jambu
Entre os saberes que estão sendo avaliados pelo Iphan está o tacacá, prato típico da região amazônica feito a partir dos subprodutos da mandioca brava, como o tucupi, e de temperos do Norte, como o jambu.
“O preparo do tacacá envolve etapas complexas e demoradas, começando pelo seu principal ingrediente, o tucupi, extraído da mandioca brava, que não pode ser consumida diretamente da natureza”, conta Bitter, explicando que a mandioca brava contém substâncias perigosas para a alimentação humana.
“Aprendemos a tornar a mandioca brava comestível graças a uma técnica secular herdada dos povos indígenas que habitaram a Amazônia e que faz parte da cultura do povo local até hoje”, explica o professor.
A produção do tacacá envolve uma comunidade local grande, que vai desde os produtores da mandioca brava, passando pelos produtores de tucupi e pelas feiras e mercados locais, onde os temperos e demais ingredientes são vendidos. É nessa etapa do processo que entra a figura da mulher amazônica: as tacacazeiras são as mulheres que preparam e vendem o tacacá.
“Reconhecer como patrimônio a relação das mulheres com saberes da culinária tradicional é transformar um índice de submissão em um instrumento de empoderamento: ser baiana de acarajé ou tacacazeira é muito mais do que cozinhar esses alimentos, é herdar um ofício histórico capaz de organizar a vida de toda uma comunidade”, defende Bitter.
Fonte: BBC
Faça um comentário