Companheira de anos do escritor português José Saramago, a jornalista, tradutora e presidenta da Fundação Saramago, Pilar Del Río conversou com o Portal em sua passagem por São Paulo. Com opiniões fortes, Pilar falou sobre sua relação com a literatura: “Sou admiradora da generosidade sem limites que têm os escritores e as escritoras porque compartilham sua intimidade com os leitores”. E foi por essa admiração entre leitor e escritor que conheceu Saramago.
Por Verônica Lugarini
A presença de Pilar del Río no Tucarena em São Paulo tomou o espaço. Quando Pilar se levantou para falar, o silêncio e admiração se fizeram presentes. O evento aconteceu nesta última sexta-feira, 8 de março no Dia das Mulheres.
A voz suave e aveludada da companheira do já falecido escritor José Saramago (1922 – 2010) contrasta com as palavras fortes que carregam um discurso tanto político quanto poético.
Com bom humor, começou dizendo o motivo pelo qual opta por falar apenas em espanhol, apesar de ter a tradução como ofício e ter vivido durante 22 anos com um português.
“Sou tradutora de português para espanhol, mas há uma maldição: os falantes de português nunca falarão espanhol e os falantes de espanhol nunca vão falar português. É impossível porque somos muito próximos e, portanto, sendo duas línguas tão próximas, é melhor que falemos nossas próprias línguas”, explicou Pilar.
Muitas vezes tratada como “viúva de Saramago” por jornalistas, Pilar é incisiva ao falar que viúva é uma palavra horripilante e que “não vivia com Saramago, vivia com o José”.
A forma como Pilar e José se conheceram está à altura de romances, onde a escrita une dois amores que apenas esperavam pelo momento do encontro.
A vida do casal rendeu o documentário intitulado José e Pilar (2010), onde Saramago conta: “Um dia de junho de 1986 telefona para minha casa em Lisboa, onde eu então vivia, uma senhora que dizia chamar-se Pilar del Río, de profissão jornalista, leitora minha e que queria, uma vez que viajaria a Lisboa, gostaria, se eu tivesse tempo, de conhecer-me. E eu disse que sim senhor”.
Pilar o procurou porque gostava muito do livro O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984) e queria agradecer o prazer da leitura. Entre um café e uma visita ao túmulo de Fernando Pessoa a conexão estava feita e ela não seria rompida até a morte do escritor. Ainda hoje o vínculo é forte, pois Pilar preside a Fundação Saramago, mantendo a obra e as lembranças do escritor para a posteridade.
Este ato de agradecimento que a fez conhecer Saramago é característico da tradutora e foi lembrado durante a entrevista ao Portal Vermelho quando questionada sobre sua ligação com a literatura.
“Na literatura o que sou é leitora e admiradora. Sou uma pessoa que toda manhã quando acordo sempre digo: ‘Cinco razões para ver’. Preciso encontrar razões para ir além. Como leitora sou admiradora da generosidade sem limites que têm os escritores e as escritoras porque compartilham sua intimidade com os leitores. Me situo como leitora simplesmente, não sou uma produtora de literatura”, afirmou.
Indissociável da vida do escritor desde que se conheceram, Pilar sempre esteve conectada a vida e obra de Saramago. Pilar traduziu os livros do autor do português para o espanhol e neles, Saramago sempre se referiu a Pilar forma carinhosa, deixando claro que a aguardava para “sentir a quarta dimensão do amor”.
Em sua dedicatória do livro As Pequenas Memórias (2006), por exemplo, ele escreveu: ” A Pilar, que ainda não havia nascido e tanto tardou a chegar”.
Desde 1986, ano em que se conheceram, Saramago publicou 10 romances durante sua vida e em mais da metade deles as dedicatórias são para Pilar. Em A viagem do elefante (2008) ele diz: “A Pilar, que não deixou que eu morresse” e em Caim, último livro publicado em vida (2010), ele escreve: “A Pilar, como se dissesse água”.
Espanhola nascida em Sevilha em 1950, Pilar é feminista, comunista e ateia e se expressou com fervor em uma data que representa as mulheres e a luta por igualdade de direitos.
“Se nós mulheres pararmos, o mundo para. Para seguir sua órbita, o mundo precisa da força das mulheres(…). Queria dizer que precisamos do feminismo, precisamos de educação e precisamos de cultura porque é isso que somos. Somos uma voz que não se pode silenciar porque estamos estudando e porque sabemos que nossas armas não são os tanques, os fuzis, ou as armas, mas a cultura. Pois, com a cultura podemos ir mais longe”, disse aos ouvintes.
Ao Vermelho Pilar explicou mais sobre essa reflexão:
“Todos nós, e todas as mulheres, sabemos que temos a obrigação e o dever de nos instruir, pois uma pessoa instruída é menos manipulável. E nós, mulheres, não fabricamos filhos para a guerra, nem para morrer. Queremos filhos que tenham cada vez mais capacidade de defesa. Por isso, acredito que a cultura e o feminismo são indissociáveis”.
Questionada sobre como vê o papel da escritora nesse ambiente cultural de empoderamento feminino que levou ao aumento de publicação de livros de mulheres, Pilar citou Virginia Woolf (1882 – 1941), escritora inglesa que trabalhou questões políticas, sociais e feministas em suas obras.
“Virginia Woolf escreveu uma conferência, já publicada, que nos ensina: ‘Se a mulher não tiver um quarto próprio [em referência ao livro Um teto todo seu], dificilmente poderá escrever’. Porque a história da literatura passada não é uma história que respeitou as mulheres. As mulheres não podiam escrever, ou seja, a escrita não era feita para elas, assim como a música, a pintura, a escultura e não nos era permitido pensar e também não éramos filósofas”.
“Ultimamente, nós mulheres, estamos ocupando o espaço. Efetivamente, a literatura é algo que se faz entre o papel e a pessoa, logo [as mulheres] têm muito mais dificuldade para publicar e quando publicam, a crítica faz muito menos caso. As escritoras estão piores colocadas e isso não é uma opinião, isso é um dado constatado. Ainda assim, nós mulheres, estamos ocupando um espaço, estamos escrevendo considerações e reflexões. E eu acho isso fantástico porque faz com que saibamos que vamos navegando contra a corrente. Ser mulher continua sendo muito difícil, mas a cada dia [estamos] mais conscientes de quem somos e nos movemos mais”.
Ainda no universo da literatura, Pilar citou escritoras que admira e novamente apareceu o nome de Virginia Woolf.
“Virginia Woolf, que citei agora mesmo, por exemplo. Outro livro é Americanah que é absolutamente maravilhoso [da autora Chimamanda Ngozi Adichie] e estão aparecendo muitas mulheres portuguesas como Lídia Jorge e Agustina Bessa-Luís. Também gosto de Lygia Fagundes Teles. Há escritoras mulheres que são muito interessantes porque têm sempre uma perspectiva distinta”.
Política
Ainda em seu discurso para o público, na maioria mulheres, Pilar destacou o papel das mulheres latino americanas.
“Uma coisa que se repetia na manifestação e na passeata era: A América Latina será feminista. Por que até agora, as mulheres participaram pouco na construção deste continente e, talvez por isso, esse continente esteja mal. (…) Está tão mal porque sempre houveram elites que governavam (…), elites que não deixaram as mulheres governarem”.
E citou mulheres que hoje estão na política como Michelle Bachelet, presidenta do Chile e Cristina Kirchner, ex-presidenta da Argentina e Dilma Rousseff, ex-presidenta do Brasil que sofreu um impeachment, que chegou ao poder com a proposta de dar continuidade à eficácia do serviço público. Entretanto, ser mulher e ter características femininas pesaram na hora do impeachment.
“Minhas queridas, somos o futuro e temos direitos, todos, mas também temos uma obrigação que é salvar os nossos países porque temos que salvar a humanidade e precisa ser agora, não depois de amanhã. Vamos acabar já com o poder patriarcal”.
Fonte Portal Vermelho
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