Influenciado pela Europa e tomado por um senso de teatralidade tropical, o escultor é tema central de uma nova mostra no Masp.
Por Jotabê Medeiros
O escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, foi considerado, por gente como o historiador de arte Germain Bazin e o escritor Dominique Fernandez, ambos franceses, como um artista do porte de Michelangelo e Gian Lorenzo Bernini. Sua obra, estruturada basicamente em torno de esculturas devocionais e produzida entre meados do século XVIII e início do século XIX, é baliza do barroco nacional.
Mas o interesse por Aleijadinho é cíclico. Na época das comemorações dos 500 anos do Descobrimento, em abril do ano 2000, sua obra viveu um ápice no movimento de museus e colecionadores e as esculturas tornaram-se a pièce de résistance de uma turnê internacional, ocupando nichos centrais em instituições como o Petit Palais de Paris e o Guggenheim Museum de Nova York.
Em 2014, o bicentenário de sua morte recebeu uma atenção modesta. E, recentemente, uma escultura de Nossa Senhora das Dores, levada a leilão na casa Christie’s de Nova York, foi vendida por preço 16% abaixo da estimativa.
Em 9 de março, abre-se no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, a mostra Imagens do Aleijadinho, mais uma generosa oportunidade para avaliar a fama de prodigiosidade do gênio do artista. São cerca de 50 obras, 38 delas esculturas – algumas que não eram vistas desde o fim dos anos 1970, quando houve no Museu de Arte Moderna do Rio uma importante exposição com a participação do arquiteto Lucio Costa.
Havia 11 anos que não se via uma mostra desse porte. Igrejas de Caeté e Raposos, em Minas Gerais, emprestaram imagens. Quatro peças vêm do Museu da Inconfidência. Colecionadores de Minas, São Paulo e Rio cederam obras. A exposição conta com uma importante iconografia correlata: mapas, gravuras, fotografias, pinturas e esculturas de viajantes e outros artistas.
O entorno abriga mapas da Capitania de Minas Gerais e suas comarcas; gravuras de viajantes do início do século XIX (que retratam a rotina e a paisagem nas minas de ouro); fotografias que documentaram a produção do escultor; e pinturas que fazem referência à geografia da arte de Aleijadinho (de Guignard, Tarsila do Amaral, Henrique Bernardelli, Aloísio Magalhães e Juan Araujo, entre outros).
Toda mostra de Aleijadinho suscita debate por conta da atribuição das obras – apenas duas esculturas do mineiro, de toda sua produção conhecida, possuem atribuição documental. O restante é fruto de estudos estilísticos e da tradição. “Qualquer seleção de obras sempre vai ter polêmica, não existe um consenso nem entre especialistas”, diz o curador da mostra, Rodrigo Moura. “Mas hoje já há catálogos mais fornidos, rigorosos, que ajudam a balizar a pesquisa.”
A questão de como o mito do Aleijadinho se solidificou é recorrente. Para assentar esse mito, uma produção análoga à obra do artista mineiro ganhou as mentes e os corações, como as fotografias do francês Marcel Gautherot e do argentino Horacio Coppola (1906-2012). Antigo aluno da Bauhaus alemã, Coppola deparou-se com a obra do Aleijadinho em 1945, durante uma viagem a Minas (esteve em Sabará, Congonhas do Campo e Ouro Preto).
Os ensaios de Coppola resultaram num único livro de fotografias sobre o artista brasileiro, amparado por poemas de Lorenzo Varela. Mas suas imagens tornaram-se referenciais. “Eu acho que ele (Coppola) soube interpretar o caráter da estrutura do Aleijadinho; o caráter teatral, patético, das imagens, o senso do monumental, do dramático. E também o caráter ornamental, não naturalista, mais expressionista, que modifica a sensação do espaço”, disse o italiano Luciano Migliaccio, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Nascido em Ouro Preto por volta de 1730 (onde morreria, em 1814), filho ilegítimo do mestre de obras e carpinteiro português Manuel Francisco Lisboa com a escrava Isabel, o Aleijadinho (o apelido veio de uma doença que causou deformidades em seu corpo) foi aríete de uma estratégia de nacionalismo do governo de Getúlio Vargas, a partir de 1930.
A intelectualidade brasileira começou a resgatá-lo ainda antes, durante o modernismo. “Na Europa, um artista como o Aleijadinho teria dado motivo a toda uma biblioteca”, lamentou o poeta Manuel Bandeira, nos anos 1920. A causa de Bandeira, abraçada por Mário de Andrade, repôs o Aleijadinho no centro do debate nacional.
“O Brasil deu nele o seu maior engenho artístico, eu creio”, escreveu Mário. “Era, de todos, o único de que se poderá dizer nacional, pela originalidade das suas soluções. Era já um produto da terra, e do homem vivendo nela, e era um inconsciente de outras existências melhores de além-mar: um aclimatado, na extensão psicológica do termo.”
“Mas, engenho já nacional, era o maior boato falso da nacionalidade, ao mesmo tempo que caracterizava toda a falsificação da nossa entidade civilizada, feita não de desenvolvimento interno, natural, que vai do centro pra periferia e se torna excêntrica por expansão, mas de importações acomodatícias e irregulares, artificiais, vindas do exterior. De fato, Antônio Francisco Lisboa profetizava para a nacionalidade um gênio plástico que os Almeida Juniores posteriores, tão raros!, são insuficientes para confirmar.” Em sua visão já canibalística, Aleijadinho fazia do defeito trunfo e do desequilíbrio, qualidade.
O argumento central de sua valorização está na consistência da produção legada. O conjunto escultórico que compõe o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), por exemplo, não conhece equivalentes desde a América do Norte até o extremo sul da Patagônia.
Entre 1796 a 1805, Aleijadinho deixou em Congonhas 66 imagens lavradas em cedro, seis relicários e 12 profetas em pedra-sabão. Oswald de Andrade afirmou: “No anfiteatro das montanhas, os profetas do Aleijadinho monumentalizam a paisagem”. É uma vasta produção de natureza múltipla: suas obras se espalham por Sabará, São João del Rei e Ouro Preto, na qual a Igreja de São Francisco de Assis é a joia do turismo – 500 mil pessoas passam pela cidade todos os anos.
Segundo artigo do escritor Silviano Santiago, a lenda do Aleijadinho virou bandeira nacional a partir de sua “descoberta” por Rodrigo Bretas, bisavô do mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, o criador do Sphan (hoje Iphan). Bretas escreveu uma protobiografia do Aleijadinho que amparou os primeiros estudos sobre o artista, apoiado em duas fontes: texto escrito em 1790 por Joaquim José da Silva, um vereador de Mariana, e o depoimento que lhe concedeu Joana, que fora casada com o filho natural de Aleijadinho.
Além de organizar a mostra, o Masp publica um catálogo com reprodução das obras expostas, imagens de obras arquitetônicas monumentais de Aleijadinho e textos de Carlos Eduardo Riccioppo, Angelo Oswaldo de Araujo Santos, Fabio Magalhães, Ricardo Giannetti e do curador Rodrigo Moura, que analisam diferentes aspectos da produção do artista.
Além de estudos inéditos, serão republicados textos de Mariano Carneiro da Cunha (sobre a presença africana na obra do artista); Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, especialista do Iphan (sobre o conjunto das esculturas dos Passos de Congonhas); e o visionário ensaio de Mário de Andrade de 1928.
Imagens do Aleijadinho|
Abertura: 9 de março, às 20 horas. De 10 de março a 10 de junho, das 10 às 18 horas. Primeiro andar do Masp (Avenida Paulista, 1.578).
30 reais (grátis às terças-feiras e para menores de 10 anos).
Fonte: Carta Capital
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