O étimo da palavra lírica está relacionado com lyra, instrumento musical de corda, que os gregos usavam para acompanhar os versos poéticos. A partir do século IV a.C., o termo lírica passou a substituir a antiga palavra mélica (de melos, “canto”, “melodia”) para indicar poemas pequenos por meio dos quais os poetas exprimiam seus sentimentos.
Aristóteles distingue a poesia mélica ou lírica, que era a palavra “cantada”, da poesia épica ou narrativa, que era a palavra recitada”, e da poesia dramática, que era a palavra “representada”.
O gênero lírico, portanto, em suas origens, está profundamente ligado à música e ao canto. Mesmo mais tarde, quando a poesia lírica deixa de ser composta para ser cantada e passa a ser escrita para ser lida, ainda conserva traços de sonoridade através dos elementos fônicos do poema: metros, acentos, rimas, aliterações, onomatopéias. Sinais evidentes dessa interação podem ser encontrados nas denominações das formas poemáticas (soneto, canção, balada, etc.) e em algumas espécies de arte que, ainda hoje, cultivam a simbiose música-palavra: a ópera, o musical, a canção popular.
O consórcio com a música nos ajuda a entender a característica mais peculiar do gênero lírico: a emocionalidade — marcante a ponto de os termos lírico e emocional serem usados quase como sinônimos. Lírico, na forma adjetiva, é visto por Émil Staiger (53) como um estado de alma, uma disposição sentimental, que o eu poemático exprime por meio de palavras fluidas, diáfanas, aparentemente sem nexo lógico.
A poesia lírica é uma explosão de sentimentos, sensações, emoções. Segundo Roman Jakobson (141), tendo como fator fundamental da comunicação o emissor, o gênero lírico ativa intensamente a função emotiva da linguagem humana.
Para expressar os conteúdos vagos de sua subjetividade, o poeta lírico lança mão de vários recursos estilísticos próprios da linguagem poética, especialmente a metáfora, que lhe permitem estabelecer parentescos entre objetos que pertencem a campos semânticos diferentes. Operando na linha da similaridade, por meio do processo psíquico da associação, a lírica encontra relações surpreendentes entre o sentimento do presente, as recordações do passado e o pressentimento do futuro, entre os fenômenos da natureza cósmica e os atributos do ser humano. Assim, por exemplo, o poeta espanhol Góngora compara o cabelo loiro da mulher amada aos raios do sol, os lábios vermelhos ao cravo matinal.
Evidentemente, os arroubos líricos só existem em fugazes momentos, não podendo sustentar uma longa composição literária. Daí decorre que a lírica se manifesta através de poemas curtos. Muito embora momentos líricos possam ser encontrados em gêneros literários de textos maiores, na epopéia (como o episódio de Inês de Castro em Os lusíadas, de Camões) ou no romance (a abertura de Iracema, de José de Alencar), a lírica, como gênero literário à parte, opera através de formas poemáticas reduzidas: a cantiga, o soneto, o rondó, etc. Podemos deduzir, então, que se toda lírica é sempre poesia, não importa se em verso ou em prosa, nem sempre a poesia em verso é lírica. É bom lembrar que poesia, segundo seu étimo grego, indica todo fazer artístico, qualquer criação literária. A lírica, portanto, é uma forma peculiar de poesia com as características que apontamos acima e que tem como meio de expressão as formas poemáticas que veremos adiante.
A evolução do gênero lírico
A poesia lírica é intrínseca à natureza humana. Os antigos gregos manifestavam em versos líricos várias atividades: o sentimento religioso (hino), a disputa esportiva (epinício), a exaltação de um homem ilustre (encômio), a celebração das núpcias (epitalâmio), a dor pela morte de um ente querido (treno), o gracejo obsceno (jambo), os preceitos morais e os sentimentos da pátria e do amor (elegia gnômica, guerreira e erótica). Infelizmente, da maravilhosa produção lírica da Grécia antiga só restaram fragmentos.
Os considerados mais importantes, pelo fato de que suas formas métricas e conteúdos ideológicos tiveram imitadores ao longo da história da lírica do Ocidente, pertencem a três grandes poetas: Safo (625-580 a.C.), a grande poetisa do amor; Píndaro (518-438 a.C.), que em suas famosas Odes exalta os ideais do povo grego; e Anacreonte (564-478 a.C.), o cantor das alegrias da mesa (Skólia) e da cama (Erótika).
A lírica de língua latina seguiu, de uma forma geral, os modelos criados pelos gregos, embora o conteúdo poemático espelhe a diferente sensibilidade do povo romano. A literatura latina apresenta quatro poetas líricos de primeira grandeza: Catulo, Horácio, Virgílio e Ovídio. Catulo (87-54 a.C.), considerado um dos maiores poetas líricos de todos os tempos, deixou-nos uma coletânea de 116 poemas, intitulada G. Valerii Catulli Liber, de onde se destacam as Nugae (Brincadeiras), poesias leves, de assunto amoroso, que retratam a trajetória de sua paixão infeliz pela sedutora e volúvel Lésbia. Horácio (65-8 a.C.), o poeta mais “clássico”, foi o modelo em que se inspiraram todos os poetas europeus até a revolução estética do romantismo. Além de poeta propriamente lírico (autor de quatro livros de odes), ele foi o maior escritor de sátiras (dois livros), gênero poético inventado pelos romanos, e de epístolas, cartas em verso dirigidas a amigos, de assunto estético-filosófico. Virgílio (70-19 a.C.), mais conhecido pelo poema épico Eneida, foi autor de belíssimas líricas pastoris: Cármina Bucólica (ou Éclogas), dez cantos que exaltam a vida dos pastores; as Geórgicas, em quatro livros, poema didático que ensina o cultivo da terra, a plantação das árvores, a criação do gado e a produção do mel. Ovídio (43 a.C. — 18 d.C.) é o poeta elegíaco mais prolífero da literatura latina: Amores, Ars Amatoria, Remedia amoris, Tristia, Epistolae ex Ponto.
Na Alta Idade Média (do século V ao XI), a poesia lírica em língua latina ficou restrita quase exclusivamente ao culto da religião cristã: hinos, salmos, partes da liturgia da missa. Na Baixa Idade Média (do século XI ao XV), com a afirmação das línguas românicas, a lírica apresenta dois filões: um, autóctone, genuinamente nacional e popular, relacionado com a vida no campo; na língua galego-portuguesa temos o exemplo das cantigas de amigo.
Outro filão é de origem culta, palaciana, surgido no sul da França, na Provença: é a famosa lírica trovadoresca, uma poesia de escola, rebuscada, que exalta a figura da mulher idealizada. A poesia trovadoresca fez muito sucesso, tendo sido imitada por poetas galegos, portugueses, castelhanos, italianos. Só foi destronada pela escola do dolce stil nuovo, surgida na Toscana, no século XIV. Poetas como Guido Guinizelli, Guido Cavalcanti, Dante Alighieri e Francesco Petrarca sentiram a necessidade de quebrar o formalismo da escola provençal, fazendo com que a palavra poética fosse a real expressão do sentimento.
O maior lírico da última fase da Idade Média foi Petrarca (1304-1374), o primeiro grande poeta introspectivo de língua neolatina. E fez escola: o petrarquismo foi a moda poética que predominou na Europa até o advento do romantismo.
A renascença, o barroco e o arcadismo, que formam o período clássico da cultura moderna, retomam os filões líricos da Baixa Idade Média (trovadorismo, estilonovismo, petrarquismo, bucolismo), acrescentando-lhes a imitação de formas e conteúdos da poesia greco-romana. Entre os poetas líricos de maior destaque, citamos: Lorenzo dei Medici (1449-1492), Ângelo Poliziano (1454-1494), Jacopo Sannazzaro (1453-1530), Torquato Tasso (1554-1595), Garcilaso de la Vega (1503-1536), Luís Vaz de Camões (1524-1580), Dom Luís de Góngora y Argote (1561-1627), Francisco de Quevedo y Villegas (1580-1645), Giambattista Marino (1589-1625), John Donne (1573-1631), Metastásio (1698-1782), Bocage (1765-1805).
O romantismo provocou uma revolução cultural que atingiu também o gênero lírico. Em nome da liberdade de sentir e de se expressar, os poetas românticos deixaram de lado os cânones estéticos do classicismo para dar larga vazão ao sentimento, cada qual poetizando segundo os impulsos de seu subjetivismo. Os estudiosos distinguem a lírica quietista dos lake’s poets, que se alimentavam de sonhos e ilusões (Novalis, Young, Keats, Wordsworth, Poe, Musset, Vigny, Lamartine, Hugo), dos poetas revolucionários, que tentaram sacudir o modelo burguês da vida (Goethe, Blake, Byron, Baudelaire).
O maior poeta lírico do romantismo foi, a nosso ver, o italiano Giacomo Leopardi, que com intensidade e melhor gosto estético soube expressar o vazio existencial provocado pelo sentimento da noia, do tédio, do desgosto face à efemeridade de qualquer tipo de prazer, personificando a insatisfação própria da época romântica.
O simbolismo revigorou o gênero lírico, após a fase do realismo vazio do ponto de vista propriamente poético. Aprofundando a ética romântica, os poetas simbolistas voltaram ao espiritualismo, tentando descobrir uma alma universal, algo misterioso que estabelecesse uma correspondência entre os elementos do mundo humano, animal e vegetal. Para tanto serviram-se da metáfora sinestética, que cria associações entre sensações de campos semânticos diferentes. Os melhores poetas simbolistas foram os franceses Mallarmé, Verlaine, Rimbaud e Valéry, este último considerado o primeiro teórico da poesia modernista.
O modernismo e a contemporaneidade apresentam vários filões líricos, difíceis de serem claramente delineados, pois oscilam entre a lucidez intelectual e o impulso anárquico. Ao lado da poesia figurativista inspirada no cubismo, dos poemas surrealistas, da escritura automática, temos formas e conteúdos poemáticos tradicionais, seguindo as pegadas das estéticas clássica e romântica.
Entre os mais expressivos representantes da poesia do nosso século destaca-se Apollinaire (1870-19 18), com seus Calligrammes, que dá o primeiro exemplo de lírica visual: as palavras adquirem sentido por sua forma gráfica e pelo espaço que ocupam na página. T. S. Eliot (1882-1965) é o poeta do fragmentarismo e da polifonia: sua obra mais famosa, The Waste Land (A terra devastada), é um mosaico cultural.
Os Cantos, de Ezra Pound (1885-1972), influenciaram muitos poetas contemporâneos pela musicalidade (melopéia), pelo figurativismo (fanopéia) e pelo intelectualismo (logopéia). Ungaretti (1888-1970) é o pai da poesia hermética: inventor do “poema- relâmpago”, utiliza poucas palavras, das quais tenta captar a essencialidade. A lírica contemporânea da língua castelhana apresenta uma galeria de poetas de primeira linha: García Lorca, Antonio Machado, Ramón Jiménez, Jorge Guillén, Gerardo Diego, Dámaso Alonso, Vicente Aleixandre, Rafael Alberti. No Brasil, após a renovação cultural provocada pela Semana de Arte Moderna (1922), a poesia lírica apresenta poetas de primeira grandeza: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar, Mário Faustino. Mas o maior poeta de língua portuguesa é, sem dúvida alguma, Fernando Pessoa (1888-1935), que se tornou imortal pela criação dos heterônimos, personalidades poéticas distintas de si próprio, cada qual expressando uma faceta estética e ideológica de sua poliédrica personalidade: Alberto Caeiro, o poeta da natureza; Ricardo Reis, o poeta da herança clássico-pagã; Álvaro de Campos, o poeta da era da máquina; Fernando Pessoa ortônimo, o poeta do saudosismo português.
O gênero lírico, entendido como expressão do sentimento do eu, apresenta, ao longo dos séculos, várias modalidades formais e diferentes atitudes ideológicas.
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