Ao completar 150 anos, o livro “O Capital”, de Karl Marx, parece mais atual do que nunca. É neste contexto de dificuldade no plano mundial, e de um Brasil que vive uma de suas piores crises econômicas e política, que se insere o seminário “O Capital 150 anos”, realizado em Porto Alegre.
Por Clomar Porto para o Portal Vermelho
Iniciado nesta segunda-feira (18), prosseguirá nos dias 21, 25 e 27 de setembro, sempre às 18h30, no auditório da Federação dos Trabalhadores e Trabalhadoras em Instituições Financeiras do RS (Rua Fernando Machado, 820, Porto Alegre). Nesta primeira noite de debates reuniu cerca de 300 participantes.
Não só a crise de 2008 fez retomar a atenção mundial sobre a obra, o que permitiu reedições nos Estados Unidos e na Alemanha, mas também novos protestos globais diante dos entraves da economia capitalista que evidenciam cada vez mais suas enormes contradições, o aumento das jornadas de trabalho, da concentração de renda e a retirada de direitos trabalhistas. Tudo isso fez gerar uma nova leitura sobre as descrições que Marx fazia das fábricas inglesas.
Mesmo antes da eclosão da crise, em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com o provocante título “O pensador do terceiro milênio?”; em 2004, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela rede de TV ZDF Marx foi considerado o pensador de maior “relevância atual”, com os votos de mais de 500 mil espectadores; e em 2005, milhões de ouvintes de todo o mundo do programa “In Our Time” da rádio BBC elegeram Marx como “o maior filósofo de todos os tempos”.
As desigualdades assolam o mundo
A noite que inaugurou o Seminário teve como foco das discussões “O Capital e a Concentração de Riqueza e Poder”. Os palestrantes foram o economista Márcio Pochmann (UNICAMP), o historiador Paulo Visentini (UFRGS) e o cientista político José Loguércio (FMG/RS).
O tema não poderia ser melhor para dar início aos debates. Agora, em 2017, a ONG britânica Oxfam, que todo ano apresenta em Davos o mapa da desigualdade mundial,expôs dados preocupantes. Desde 2015, apenas 1% da população global concentra mais riqueza que os 99% restantes. Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas transferirão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – soma mais alta que o PIB da Índia, que tem 1,2 bilhão de habitantes. A renda dos 10% mais pobres aumentou apenas cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a do 1% mais ricos aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja, 182 vezes mais. Nos EUA, pesquisa recente do economista Thomas Pickety revela que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%.
O dado mais chocante, entretanto, é a constatação de que, atualmente, apenas oito homens detêm a mesma riqueza que a metade da população do mundo (3,6 bilhões de pessoas). São eles: Bill Gates, Amancio Ortega, Warren Buffett, Carlos Slim, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Larry Ellison e Michael Bloomberg.
Evidenciando a centralidade deste debate, uma das colunas mais conhecidas da revista semanal The Economist, a Bagehot (que tem como responsável Adrian Wooldridge) publicou, na edição de 13 de maio, um artigo que seria impensável encontrar nas páginas de qualquer revista econômica de orientação igualmente liberal, na Espanha ou mesmo no Brasil.
Sob o título “O momento marxista” e o subtítulo “Os trabalhistas têm razão: Karl Marx tem muito a ensinar aos políticos de hoje”, Bagehot analisa o debate entre o dirigente do Partido Trabalhista do Reino Unido, Jeremy Corbyn, e seu ministro sombra da Economia e Fazenda, o John McDonnell, por um lado, e os dirigentes do Partido Conservador e os jornais conservadores Daily Telegraph e Daily Mail, por outro.
A coluna Bagehot propõe discutir o que considera as grandes profecias de Karl Marx (assim as define), para entender o que está acontecendo hoje no mundo capitalista desenvolvido. Conclui que muitas das previsões do velho economista resultaram corretas. Entre elas destaca que os capitalistas, a classe dos proprietários e gestores do grande capital produtivo, está sendo substituída – como anunciou Marx – cada vez mais pelos proprietários e gestores do capital especulativo e financeiro, que Marx considera parasitários da riqueza criada pelo capital produtivo. Essa classe parasitária é a que, segundo a coluna, domina o mundo do capital, sendo tal situação a maior responsável pelo “abusivo” e “escandaloso” crescimento das desigualdades.
Atualidade de O Capital
O coordenador da Fundação Maurício Grabois no RS, Raul Carrion, destacou a importância do evento e o esforço pela sua realização por parte dos organizadores, sobretudo neste momento por que passa o Brasil. “É um debate muito atual, e que ajuda na compreensão das contradições do capitalismo e na necessidade da luta para a sua superação”, disse. A obra de Karl Marx que está no centro da discussão, segundo Carrion, “desvendou o sistema capitalista de exploração e armou os trabalhadores de todo o mundo para lutarem por uma nova sociedade sem amos e sem senhores”.
O primeiro palestrante da noite foi o professor Paulo Visentini. A partir de seu trabalho com historiador, Visentini destacou o papel relevante do materialismo-histórico como paradigma fundamental para explicar as relações entre os povos e sua obra fundamental: O Capital. O capitalismo, segundo ele, sempre privilegiou a existência de um centro hegemônico mundial e uma periferia. Realidade que partiu do protagonismo da Europa sobre o mundo.
Um outro aspecto destacado foi que, desde o século XVI, várias nações hegemônicas se sucederam e viveram seu declínio, mas isso não acabou com o sistema capitalista. O sistema capitalista desenvolveu uma capacidade de se adaptar e se “reinventar” em meio às suas crises. O capitalismo nunca conseguiu produzir crescimento contínuo. Ele produz suas próprias crises, que são oriundas de razões internas ao próprio sistema. Essas crises geram rearranjos e até retrocessos nos sistemas produtivos, causando enormes prejuízos aos povos.
Visentini também chamou a atenção para o estado e sua relação com o movimento do capital. Mesmo na “pregação” neoliberal de “menos estado” – ele está lá como elemento fundante e até garantidor do sistema. A obra de Karl Marx, segundo Visentini, guarda uma grande importância porque explica essas crises e identifica a negação interna do próprio sistema.
Sistema marcado por crises
O economista Marcio Pochman também fez uma exposição resgatando a história do capitalismo para assim estabelecer as relações com a obra marxista. Indicou três elementos decisivos na sua evolução como sistema mundial: a dimensão global, que organiza uma expansão territorial permanente, ou seja, o capitalismo está sempre buscando novos mercados e extração de mais-valia, nem que para isso tenha que fazer a destruição dos modos de produção alternativos. Outro elemento é a hierarquia no seu funcionamento, essa característica se dá a partir da existência de um centro dinâmico que comanda a “periferia” através da dominância do dinheiro (uma moeda com curso internacional e como expressão da riqueza), do progresso técnico e do poder das armas. Já o grau de desenvolvimento destas nações periféricas ocorre pela relação de maior ou menor proximidade com o centro dinâmico. O terceiro elemento é a capacidade que o sistema capitalista possui de produzir as saídas para suas contradições, ou seja, as crises são um elemento da “normalidade” do funcionamento do sistema.
Segundo o economista, o primeiro grande centro capitalista no mundo foi a Inglaterra. Era um verdadeiro império, que ocupou este espaço através da sua capacidade de mecanização, controle da moeda e do poderio militar, que impôs, através das guerras, a destruição dos modos de produção na Ásia, China e Índia. Neste período, praticamente não haviam estados nacionais, apenas estados imperiais e relações com as colônias.
Com a crise de 1929, e as duas grandes guerras (1914-1918 e 1939-1945), foi sendo desconstruído o desenho do capitalismo do século XIX, dando lugar a uma nova realidade baseada na chamada segunda revolução industrial – protagonizada e disputada entre Estados Unidos e Alemanha. A era da energia elétrica, do petróleo, do motor a combustão. As empresas se tornaram muito maiores, e passaram a contratar grandes contingentes de trabalhadores.
Neste momento, o capitalismo mudou profundamente a sua natureza devido a existência da “grande empresa”. Já o mercado perdeu completamente a capacidade de se auto-regular, pois inviabilizou-se a chamada concorrência perfeita, entre os outrora pequenos empreendimentos. Inicia ai a concorrência oligopolista e monopolista. A grande depressão econômica de 1929 foi respondida com outro modelo de estado. Não mais um estado mínimo, mas um estado expandido, de bem-estar social (também como resposta ao avanço do socialismo e a revolução Russa, de 1917), ideal para este capitalismo que se reconstituiu após as guerras. Uma fase que perdura até o final dos anos de 1980. Neste período, a concentração do capital se dá em bases nacionais, com estados relativamente soberanos. Um capitalismo regulado no espaço nacional e no espaço supra-nacional: o chamado acordo de “Bretton Woods (1944)”.
Os anos de 1980 trazem consigo mais uma grande mudança no sistema. Iniciam as políticas neoliberais – uma nova onda de globalização – protagonizada desta vez pelas grandes corporações transnacionais, com papel cada vez maior que os estados nacionais. “Essas grandes corporações, hoje, são agentes do retrocesso. Não da evolução. Elas se instalam em locais onde a regulação do mercado de trabalho é a menor possível, e onde houver o menor imposto possível. Elas não querem ser partícipes de um mundo civilizado que paga impostos”, sentencia Pochman. Além disso, segundo ele, essas grandes empresas interferem nas questões nacionais, da compra de políticos, da corrupção e com a interferência direta nos orçamentos nacionais. E complementa: “Não seria justo dizer que estamos saindo do estado de bem-estar social para o estado mínimo. O estado nunca foi mínimo dos anos 80 para cá. Em geral todos os estados mantiveram a capacidade de arrecadação do estado. O que houve foi uma mudança na composição do gasto e na forma de arrecadação: reduziram-se impostos para os ricos. É um estado cada vez mais articulado com essas grandes corporações”.
Pochman conclui com análise do período atual de ajuste do capitalismo, que vive uma crise há 10 anos. Constitui-se, segundo ele, em uma estrutura social muito diferente daquela que vigorou na segunda metade do século XX. “Passamos de um mundo do trabalho assalariado, hierarquizado e organizado para uma decomposição desta estrutura social, um desaparecimento da classe média assalariada e da mão de obra industrial, tendo em vista estar havendo uma diminuição dos postos de trabalho na indústria e um crescimento no setor de serviços, sobretudo financeiros, que alavancam o sistema. Há uma diminuição na renda dos trabalhadores”. Ainda, para Pochman, instituições típicas do modelo anterior, como sindicatos, associações de classe, partidos, entram em crise porque estariam em dissonância com as novas estruturas e a lógica capitalista.
Novo “precariado”
Os grandes prejudicados pelos novos arranjos do sistema capitalista na sua fase neoliberal são, sem sombra de dúvidas, os trabalhadores. “Hoje, estar empregado não significa estar livre da pobreza, como no passado. Ou seja, o próprio trabalho significa reprodução da pobreza. É o surgimento de um novo precariado (esta classe trabalhadora) segundo alguns estudiosos”, afirmou Pochman. Essa configuração aponta para uma sociedade cada vez mais polarizada, entre uma maioria empobrecida e uma classe dominante cada vez mais rica.
Pochman faz uma avaliação muito negativa sobre as perspectivas deste modelo capitalista vigente. Ao mesmo tempo, pontua a ausência de instituições e de uma organização forte o suficiente na sociedade para galvanizar uma saída que aponte para a superação deste modelo.
Projeto nacional no centro da tática
O exame de saídas e perspectivas para a luta social contra-hegemônica foi a tônica da fala do último palestrante da noite, o cientista político José Loguércio. “É só partindo dessa obra de Marx, que veio a público após esforço incomum de Engels, podemos compreender o neoliberalismo. Isto porque, só nessa obra está conceituado de maneira ampla o capital e seu processo histórico de desenvolvimento”, afirmou.
Loguércio cita que, segundo Marx, após o século XVIII em diante, há o predomínio da indústria, com o surgimento dos bancos e do sistema de crédito que acompanham o capitalismo. Com o advento dos bancos e do sistema de crédito, Marx descobre o “capital portador de juros”. Ou seja, um dinheiro que é emprestado para ser recebido acrescido de juros. “Essa é a parte quinta do terceiro livro. Conforme adverte Engels, a mais difícil. E eu acrescento: sem seu estudo é impossível compreender o capitalismo na atualidade, em especial o neoliberalismo”. E complementa: “Não há dúvida que o capital portador de juros, elevou a produção a níveis sem precedentes.”
O cientista político assevera que a concentração de poder no ocidente aumentou enormemente quando os proprietários do capital portador de juros na sua forma mais nefasta – o capital fictício – se apropriaram dos órgãos centralizados de poder de estado nos países imperialistas. E seu domínio sobre outras nações conta basicamente com os proprietários do capital fictício local. “Para eles democracia e direitos sociais são dispensáveis. E como esse tipo de capital é formado, basicamente, por títulos de propriedade, seus proprietários passaram a controlar solidamente o judiciário de vários países”, denuncia.
Globalização Bifurcada
Loguércio também acentua a importância de uma característica geral do capitalismo atual: “quando surgiu o neoliberalismo, praticamente tinha-se completado o processo de emancipação das colônias. Deste processo surgem as nações, algumas baseadas em Estados milenares, que passam a se tornar zelosas da soberania de seus Estados Nacionais. O neoliberalismo propiciou que várias dessas nações atraíssem e atraiam quantidades imensas de capitais reais. De um modo geral o capitalismo se desenvolve de maneira desigual e combinada. Isso acontece de país para país, entre ramos de produção e mesmo entre regiões. Ele quer dizer que, hoje, enquanto no ocidente predomina o capital financeiro e fictício, em países do oriente concentram-se grandes processos de produção industrial.
Já no que se relaciona com a América Latina e na África, os seus estados nacionais estão prensados pela globalização bifurcada, segundo a análise de Loguércio. “Quando se submetem, conhecem imenso retrocesso. Quando mantém sua soberania, embora todas as dificuldade, dão origem a um ciclo virtuoso de crescimento.”
Loguércio também cita uma nova grande ameaça que paira sobre a economia mundial: “muitos analistas já começam a prever uma nova crise monetária de proporções ainda maiores que a de 2008. E o que é mais grave, com instrumentos mais débeis para serem enfrentados por seus Estados. Efetivamente crescem as dívidas públicas, das empresas e das famílias. Com o agravante de que o capital real não mostra sinal de retomada nas áreas sob o controle do neoliberalismo. Essa crise repercutirá no mundo inteiro. Mas no final das contas sua tendência é aprofundar ainda mais a bifurcação da globalização como ocorreu com a de 2008”, sentenciou.
A hora e a vez das Nações Soberanas com estados Indutores do desenvolvimento
A saída, segundo Loguércio, passa necessariamente pela afirmação dos estados nacionais que, para serem soberanos, precisam controlar o crédito, a entrada e saída de capitais monetários, os juros e o câmbio. “E só os Estados Nacionais que exerçam esse controle conseguem manter sua soberania. É evidente que cada Nação precisa de um projeto próprio, que leve em conta suas riquezas naturais, a experiência de cada povo, a necessária sustentabilidade e industrialização. Mas sem àqueles controles ele não vai adiante”, asseverou.
O Capital apareceu em 1867
A primeira edição do volume primeiro de O Capital apareceu em Hamburgo, em 1867, com uma tiragem de mil exemplares. Uma segunda edição, publicada em fascículos e revista pelo autor, viria a ser publicada entre junho de 1872 e maio de 1873. Em 1883, uma edição póstuma foi publicada sob a responsabilidade de Engels, com os acréscimos e correções baseados em notas manuscritas do autor e de duas edições anteriores: a segunda alemã e a primeira francesa. Uma edição “definitiva”, pelo menos aquela que nortearia novos estudos e traduções ao longo do século XX, seria lançada em 1890, com alguns novos acréscimos de Engels, tirados, sobretudo, da edição inglesa traduzida por Edward Aveling e Samuel Moore. A edição francesa é especialmente importante, porque foi a partir dela que muitos leitores do mundo ocidental tiveram acesso ao texto de Marx.
Inscrições
As inscrições para as próximas etapas do Seminário poderão ser feitas junto às entidades organizadoras e apoiadoras do evento, no DCE/UFRGS (Av. João Pessoa, 41), na Livraria Bouquiniste (Rua André Puente, 357). Serão aceitas inscrições no próprio local das palestras. Farão jus a certificado todos aqueles que acompanharem ao menos três mesas de debate.
O seminário é organizado por Fundação Maurício Grabois, Instituto Histórico Geográfico do RS, Sindicato dos Economistas do RS, Sociedade de Economia do RS, Departamento de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS, Diretório Central de Estudantes da UFRGS e Diretório Acadêmico dos Estudantes de Ciências Econômicas da UFRGS. Conta ainda com apoio de duas dezenas de entidades sindicais, estudantis e populares.
Os próximos debates:
21 de setembro – quinta-feira
Mesa: Os 150 anos de O Capital e sua influência no Brasil e no mundo
Palestrantes: economista Eduardo Costa Pinto (UFRJ), economista Pedro Fonseca (UFRGS) e historiador Diorge Konrad (UFSM).
Coordenação: Gabriela Silveira (coord. DCE-UFRGS)
25 de setembro – seguinda-feira
Mesa: Estrutura, método e teoria do capital
Palestrantes: economista Luiz G. Belluzzo (UNICAMP), filósofa Madalena Guasco (PUCSP) e economista Gláucia Campregher (UFRGS).
Coordenação: economista Claudio Accurso.
27 de setembro – quarta-feira
Mesa: As crises capitalistas e a atualidade do capital
Palestrantes: economista Leda Maria Paulani (USP), economista Aloísio Barroso (FMG) e economista Marcelo Milan (UFRGS).
Coordenação: economista Mark Kuschick.
De Porto Alegre
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